30/05/2050

O dramaturgo Julio
Luis Augusto Fischer 
(ABC - Lazer & Cultura - 04/05/1997) 


Uma cidade, uma região, uma época, se marcam por uma série de indivíduos'peculiares. Porto Alegre não seria a mesma não tivessem exis-tido Qorpo-Santo, Apolinário Porto Alegre, Dionélio Machado, Erico Verissimo, Luiz Fernando Verissimo ou o vendedor de bilhetes que gritava gurizada medonha na Rua da Praia. Hoje, é imprescindível que existam o Juarez Fonseca, meu vizinho aí de cima, o Santiago lá da última página deste caderno, o Goida com sua coluna XYZ Domingo, ou o Edgar Vásquez, o Jesus Iglesias, o Luciano Alabarse e tantos outros. Pois hoje nosso comentado é uma dessas figuras imprescindíveis. Trata-se do Júlio Zanotta Vieira, que atualmente parece apenas um competente presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro e dono da livraria Ao Pé da Letra. Mas o Júlio, com aquela cara de, como talvez dissesse Nelson Rodrigues, sátiro vadio, com aquele ar século 19, com aquele aspecto de monge medieval (do grupo dos monges magros, não dos gordos, é claro), o Júlio já fez algumas por aí. - Como isto não é um esboço biográfico, vou me restringir ao que importa: sua atuação na vida cultural. Júlio foi um dos idealizadores, fundadores e agitadores do ainda hoje existente (mas sem sua presença) grupo de teatro Oi Nóis Aqui Traveiz, que o Paulo Flores rebatizou para, se não me engano, Tribo de Atuadores, em lugar de grupo de teatro. Isso se passou lá no fim dos 70, uma época que marcou. E o Júlio não era apenas um ator e diretor: escrevia muitos dos textos que foram representados pelo pessoal. -Lembro que em 78, quando eles estouraram, nós, os que estávamos na Universidade, vibrávamos com sua ousadia. Eles foram um sopro de rebeldia naquela altura, e de rebeldia especial: ao invés da contestação que se fazia no movimento estudantil, que era de tipo mais imediato (nós queríamos Anistia ampla, geral e. irrestrita e, veja só, a convocação de uma Constituinte livre, soberana e democrática, com ênfase nos adjetivos não parece pré-história da humanidade isso?), o Oi Nóis Chutava o pau da barraca, ao discutir comportamento, moral, ética, e sempre aos gritos, com contundência. Foi uma pequena revolução. (No ano passado, quando assisti ao grupo catalão La Fura dels Baus em Madrid, espécie de totem do teatro de vanguarda para todo o Ocidente, logo me lembrei do Ói Nóis: o pessoal do Fura, se vivesse em Porto Alegre em 78, teria sido o Ói Nóis; se o pessoal do Ói Nóis vivesse em Barcelona em 96 seria La Fura, pode crer e .conferir, porque os espanhóis vêm se apresentar aqui, em Porto Alegre, daqui a pouco, numa promoção da Secretaria Municipal de Cultura da capital.) Mas estamos conversando muito e não chegamos ao ponto. Que é o livro que o Júlio editou, pela Mercado Aberto, no fim do ano passado. Trata-se de Teatro Lixo, nome que já insinua alguns dos divertidos horrores que o grupo fez naquela.quadrá. Para começar, o livro é nada menos que um documento, um relato do que se fez então. Constam os textos das peças A divina proporção, A felicidade não esperneia, patatipatatá, A libertação do diretor-presidente e As cinzas do general, cuja leitura nos leva de vota ao cenário do momento, com suas frágilidades e grandezas. E surpreende o leitor porque não há ali par fletarismo (se a gente revisse a média dos textos que se escreviam na época, meu Deus, que trivialidade!), mas sim muita força, muita radicalidade. O Ói Nóis enfrentou a dita crise do teatro de frente, olho dentro do olho do furacão, com um pé no surrealismo e outro, outro..., outro também no surrealismo: contestação radical, libertária. Está reproduzido o panfleto-carta de intenções do grupo, redigido pelo Júlio, que fala da necessidade de um teatro com pedras nas veias. No primeiro parágrafo já se anuncia: Pedra nas veias para tentar criar uma demonstração coerente da barbárie. E depois: Pedra nas veias para ir um pouco adiante da cultura de resistência. Para ousar opor-se. Para completar, o Júlio fez constar também textos críticos da época (Cláudio Heemann, Antônio Hohlfeldt, Aldo Obino, Tânia Faillace), manchetes de jornal também de época, ao lado ainda de fotos que são preciosidades: a cara jovem de todo mundo, -o teatro improvisado na Ramiro Barcellos, esquina Cristóvão ("ali onde o Colombo põe o ovo em pé", conforme dizia o anúncio), o desalento pela atuação da Censura, o cenário da Magliani. Livro precioso, que o Júlio teve a sabedoria de fazer publicar.

O escritor Julio
Luis Augusto Fischer
(ABC - Lazer & Cultura - 04/05/1997) 





     Vamos aproveitar para lembrar outra edição do mesmo Júlio Zanotta, feita em 95. Trata-se do livro Louco, feito com a parceria de Lordsir Peni-nha, autor das ilustrações que motivaram a narrativa feita pelo. Júlio (edição Ao Pé da Letra, que imagino só seja vendido pela livraria de mesmo nome).
    A edição física é um luxo: papel couché pesado, todo em vermelho, preto e branco, com um projeto grá-fico ousado e lindo. Com o requinte de a lombada vir atada por urna fita que lembra as edições artesanais. (Há uma história interessante a respeito de cuidado com edições artesa-nais: os simbolistas, aqueles poetas macambúzios e filosofantes da vira-da do século, compreendiam que editar era-parte inescapável do processo de criação. Por isso, em alguns casos chegavam a rejeitar a edição convencional, como forma de demonstrar sua aversão ao mundo comum. Conta-se que um poeta simbolista, em Curitiba, cidade que teve uma geração forte de simbolistas, como Porto Alegre, recusou uma grana que lhe oferecia um amigo para editar seu próprio livro, porque achava uma corrupção de seus princípios ser auxiliado por um mecanismo burguês. Mas o amigo insistia. Até que o poeta, pobre aceitou, mas mediante uma troca: o amigo rico deveria também ele fazer poesia, e poesia simbolista, para reconfortar o poeta pobre, que então toparia a grana de um confrade, não de um mecenas.) A narrativa do Júlio figura o pensa-mento, a fala, de um louco, como insinua o título. E consegue fazer isso, já a partir dos títulos dos capítulos: Replicação Reflexa, Salto Estrangulado, Luz Interdita, Resíduo Contido, Reação Adaptativa, Córnea Turva, por aí. Não se trata de um discurso literário sobre um louco, mas da fala mesma de um louco seja lá o que esta categoria signifique, principalmente depois de certos episódios que a vida real nos apresenta.
    Esta resenha fica meio capenga porque o leitor não está vendo as ilustrações do Peninha, uma para cada capítulo, uma mais cruel que .a outra. Corpos humanos traçados com brevidade, turvos, rabiscados, nervosos. Rostos escuros, olhos melancólicos e duros, pequenas legendas igualmente maltraçadas e elípticas. E o texto do Júlio: "Tenho um lado mais forte que me segura. Gostaria de poder satisfazer certas necessidades primitivas, mas se o fizer me comprometeria e vocês sabem que existe uma graduação raciona l .Tudo aqui é muito sério, feito no silêncio com técnica fechada. No primeiro dia me pareceu coisa de animais. Depois pensei bem, pensei muito, e achei que tava certo. Somos animais mas nos tratam com carinho. Há . muito carinho aqui. E amor também. Trabalho na rouparia. Recebo visita semana sim, semana não. Eu sou um cara muito calmo. Tudo que eu faço, é na calma. Já me disseram que sou do tipo contemplativo", diz o protagonista, num de seus momentos mansos.
    Pelo conjunto da obra publicada pelo Júlio até agora, já se pode ir percebendo que se trata de um sujeito de alta valia. Em nossa terra tão afeita aos modos realistas de fazer literatura e arte (e modos tantas vezes banais), um ousado como ele cria o desconforto imprescindível para renovar o ar da sala. Um ousado de qualidade, que talvez a gente só re-conheça daqui a muito tempo. Mas quem está certo é o Júlio: não importa muito, para o verdadeiro artista, que nós outros demoremos a compreender, a ouvir sua voz. (E fica urna dúvida: o fato do Júlio ser nascido e criado em Pelotas terá algo á ver com seu surrealismo? Aquele ambiente povoado de pesadelos e sonhos, de arquitetura sofisticada e parado no tempo, poderá ter sido matriz de sua radicalidade artística, similar à radicalidade de outro grande artista pelotense contemporâneo chamado Vitor Ramil, que não por acaso também bebe das águas surrealistas?)