O dramaturgo Julio
Luis Augusto Fischer
(ABC - Lazer & Cultura - 04/05/1997)
Uma cidade, uma região, uma época, se marcam por uma
série de indivíduos'peculiares. Porto Alegre não seria a mesma não tivessem
exis-tido Qorpo-Santo, Apolinário Porto Alegre, Dionélio Machado, Erico
Verissimo, Luiz Fernando Verissimo ou o vendedor de bilhetes que gritava
gurizada medonha na Rua da Praia. Hoje, é imprescindível que existam o Juarez
Fonseca, meu vizinho aí de cima, o Santiago lá da última página deste caderno,
o Goida com sua coluna XYZ Domingo, ou o Edgar Vásquez, o Jesus Iglesias, o Luciano
Alabarse e tantos outros. Pois hoje nosso comentado é uma dessas figuras
imprescindíveis. Trata-se do Júlio Zanotta Vieira, que atualmente parece apenas
um competente presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro e dono da livraria Ao
Pé da Letra. Mas o Júlio, com aquela cara de, como talvez dissesse Nelson
Rodrigues, sátiro vadio, com aquele ar século 19, com aquele aspecto de monge
medieval (do grupo dos monges magros, não dos gordos, é claro), o Júlio já fez
algumas por aí. - Como isto não é um esboço biográfico, vou me restringir ao
que importa: sua atuação na vida cultural. Júlio foi um dos idealizadores, fundadores
e agitadores do ainda hoje existente (mas sem sua presença) grupo de teatro Oi
Nóis Aqui Traveiz, que o Paulo Flores rebatizou para, se não me engano, Tribo
de Atuadores, em lugar de grupo de teatro. Isso se passou lá no fim dos 70, uma
época que marcou. E o Júlio não era apenas um ator e diretor: escrevia muitos
dos textos que foram representados pelo pessoal. -Lembro que em 78, quando eles
estouraram, nós, os que estávamos na Universidade, vibrávamos com sua ousadia.
Eles foram um sopro de rebeldia naquela altura, e de rebeldia especial: ao
invés da contestação que se fazia no movimento estudantil, que era de tipo mais
imediato (nós queríamos Anistia ampla, geral e. irrestrita e, veja só, a
convocação de uma Constituinte livre, soberana e democrática, com ênfase nos
adjetivos não parece pré-história da humanidade isso?), o Oi Nóis Chutava o pau
da barraca, ao discutir comportamento, moral, ética, e sempre aos gritos, com
contundência. Foi uma pequena revolução. (No ano passado, quando assisti ao
grupo catalão La Fura dels Baus em Madrid, espécie de totem do teatro de
vanguarda para todo o Ocidente, logo me lembrei do Ói Nóis: o pessoal do Fura,
se vivesse em Porto Alegre em 78, teria sido o Ói Nóis; se o pessoal do Ói Nóis
vivesse em Barcelona em 96 seria La Fura, pode crer e .conferir, porque os
espanhóis vêm se apresentar aqui, em Porto Alegre, daqui a pouco, numa promoção
da Secretaria Municipal de Cultura da capital.) Mas estamos conversando muito e
não chegamos ao ponto. Que é o livro que o Júlio editou, pela Mercado Aberto,
no fim do ano passado. Trata-se de Teatro Lixo, nome que já insinua alguns dos
divertidos horrores que o grupo fez naquela.quadrá. Para começar, o livro é
nada menos que um documento, um relato do que se fez então. Constam os textos das peças A divina
proporção, A felicidade não esperneia, patatipatatá, A libertação do
diretor-presidente e As cinzas do general, cuja leitura nos leva de vota ao
cenário do momento, com suas frágilidades e grandezas. E surpreende o leitor
porque não há ali par fletarismo (se a gente revisse a média dos textos que se
escreviam na época, meu Deus, que trivialidade!), mas sim muita força, muita
radicalidade. O Ói Nóis enfrentou a dita crise do teatro de frente, olho dentro
do olho do furacão, com um pé no surrealismo e outro, outro..., outro também no
surrealismo: contestação radical, libertária. Está reproduzido o panfleto-carta
de intenções do grupo, redigido pelo Júlio, que fala da necessidade de um
teatro com pedras nas veias. No primeiro parágrafo já se anuncia: Pedra nas
veias para tentar criar uma demonstração coerente da barbárie. E depois: Pedra
nas veias para ir um pouco adiante da cultura de resistência. Para ousar
opor-se. Para completar, o Júlio fez constar também textos críticos da época
(Cláudio Heemann, Antônio Hohlfeldt, Aldo Obino, Tânia Faillace), manchetes de
jornal também de época, ao lado ainda de fotos que são preciosidades: a cara
jovem de todo mundo, -o teatro improvisado na Ramiro Barcellos, esquina
Cristóvão ("ali onde o Colombo põe o ovo em pé", conforme dizia o
anúncio), o desalento pela atuação da Censura, o cenário da Magliani. Livro
precioso, que o Júlio teve a sabedoria de fazer publicar.
Uma cidade, uma região, uma época, se marcam por uma
série de indivíduos'peculiares. Porto Alegre não seria a mesma não tivessem
exis-tido Qorpo-Santo, Apolinário Porto Alegre, Dionélio Machado, Erico
Verissimo, Luiz Fernando Verissimo ou o vendedor de bilhetes que gritava
gurizada medonha na Rua da Praia. Hoje, é imprescindível que existam o Juarez
Fonseca, meu vizinho aí de cima, o Santiago lá da última página deste caderno,
o Goida com sua coluna XYZ Domingo, ou o Edgar Vásquez, o Jesus Iglesias, o Luciano
Alabarse e tantos outros. Pois hoje nosso comentado é uma dessas figuras
imprescindíveis. Trata-se do Júlio Zanotta Vieira, que atualmente parece apenas
um competente presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro e dono da livraria Ao
Pé da Letra. Mas o Júlio, com aquela cara de, como talvez dissesse Nelson
Rodrigues, sátiro vadio, com aquele ar século 19, com aquele aspecto de monge
medieval (do grupo dos monges magros, não dos gordos, é claro), o Júlio já fez
algumas por aí. - Como isto não é um esboço biográfico, vou me restringir ao
que importa: sua atuação na vida cultural. Júlio foi um dos idealizadores, fundadores
e agitadores do ainda hoje existente (mas sem sua presença) grupo de teatro Oi
Nóis Aqui Traveiz, que o Paulo Flores rebatizou para, se não me engano, Tribo
de Atuadores, em lugar de grupo de teatro. Isso se passou lá no fim dos 70, uma
época que marcou. E o Júlio não era apenas um ator e diretor: escrevia muitos
dos textos que foram representados pelo pessoal. -Lembro que em 78, quando eles
estouraram, nós, os que estávamos na Universidade, vibrávamos com sua ousadia.
Eles foram um sopro de rebeldia naquela altura, e de rebeldia especial: ao
invés da contestação que se fazia no movimento estudantil, que era de tipo mais
imediato (nós queríamos Anistia ampla, geral e. irrestrita e, veja só, a
convocação de uma Constituinte livre, soberana e democrática, com ênfase nos
adjetivos não parece pré-história da humanidade isso?), o Oi Nóis Chutava o pau
da barraca, ao discutir comportamento, moral, ética, e sempre aos gritos, com
contundência. Foi uma pequena revolução. (No ano passado, quando assisti ao
grupo catalão La Fura dels Baus em Madrid, espécie de totem do teatro de
vanguarda para todo o Ocidente, logo me lembrei do Ói Nóis: o pessoal do Fura,
se vivesse em Porto Alegre em 78, teria sido o Ói Nóis; se o pessoal do Ói Nóis
vivesse em Barcelona em 96 seria La Fura, pode crer e .conferir, porque os
espanhóis vêm se apresentar aqui, em Porto Alegre, daqui a pouco, numa promoção
da Secretaria Municipal de Cultura da capital.) Mas estamos conversando muito e
não chegamos ao ponto. Que é o livro que o Júlio editou, pela Mercado Aberto,
no fim do ano passado. Trata-se de Teatro Lixo, nome que já insinua alguns dos
divertidos horrores que o grupo fez naquela.quadrá. Para começar, o livro é
nada menos que um documento, um relato do que se fez então. Constam os textos das peças A divina
proporção, A felicidade não esperneia, patatipatatá, A libertação do
diretor-presidente e As cinzas do general, cuja leitura nos leva de vota ao
cenário do momento, com suas frágilidades e grandezas. E surpreende o leitor
porque não há ali par fletarismo (se a gente revisse a média dos textos que se
escreviam na época, meu Deus, que trivialidade!), mas sim muita força, muita
radicalidade. O Ói Nóis enfrentou a dita crise do teatro de frente, olho dentro
do olho do furacão, com um pé no surrealismo e outro, outro..., outro também no
surrealismo: contestação radical, libertária. Está reproduzido o panfleto-carta
de intenções do grupo, redigido pelo Júlio, que fala da necessidade de um
teatro com pedras nas veias. No primeiro parágrafo já se anuncia: Pedra nas
veias para tentar criar uma demonstração coerente da barbárie. E depois: Pedra
nas veias para ir um pouco adiante da cultura de resistência. Para ousar
opor-se. Para completar, o Júlio fez constar também textos críticos da época
(Cláudio Heemann, Antônio Hohlfeldt, Aldo Obino, Tânia Faillace), manchetes de
jornal também de época, ao lado ainda de fotos que são preciosidades: a cara
jovem de todo mundo, -o teatro improvisado na Ramiro Barcellos, esquina
Cristóvão ("ali onde o Colombo põe o ovo em pé", conforme dizia o
anúncio), o desalento pela atuação da Censura, o cenário da Magliani. Livro
precioso, que o Júlio teve a sabedoria de fazer publicar.
O escritor
Julio
Luis
Augusto Fischer
Vamos aproveitar para lembrar outra edição do
mesmo Júlio Zanotta, feita em 95. Trata-se do livro Louco, feito com a parceria
de Lordsir Peni-nha, autor das ilustrações que motivaram a narrativa feita pelo.
Júlio (edição Ao Pé da Letra, que imagino só seja vendido pela livraria de mesmo
nome).
A
edição física é um luxo: papel couché pesado, todo em vermelho, preto e branco,
com um projeto grá-fico ousado e lindo. Com o requinte de a lombada vir atada
por urna fita que lembra as edições artesanais. (Há uma história interessante a
respeito de cuidado com edições artesa-nais: os simbolistas, aqueles poetas
macambúzios e filosofantes da vira-da do século, compreendiam que editar
era-parte inescapável do processo de criação. Por isso, em alguns casos chegavam
a rejeitar a edição convencional, como forma de demonstrar sua aversão ao mundo
comum. Conta-se que um poeta simbolista, em Curitiba, cidade que teve uma
geração forte de simbolistas, como Porto Alegre, recusou uma grana que lhe
oferecia um amigo para editar seu próprio livro, porque achava uma corrupção de
seus princípios ser auxiliado por um mecanismo burguês. Mas o amigo insistia.
Até que o poeta, pobre aceitou, mas mediante uma troca: o amigo rico deveria
também ele fazer poesia, e poesia simbolista, para reconfortar o poeta pobre,
que então toparia a grana de um confrade, não de um mecenas.) A narrativa do
Júlio figura o pensa-mento, a fala, de um louco, como insinua o título. E
consegue fazer isso, já a partir dos títulos dos capítulos: Replicação Reflexa, Salto Estrangulado, Luz Interdita,
Resíduo Contido, Reação Adaptativa, Córnea Turva, por aí. Não se trata de
um discurso literário sobre um louco, mas da fala mesma de um louco seja lá o
que esta categoria signifique, principalmente depois de certos episódios que a
vida real nos apresenta.
Esta
resenha fica meio capenga porque o leitor não está vendo as ilustrações do
Peninha, uma para cada capítulo, uma mais cruel que .a outra. Corpos humanos
traçados com brevidade, turvos, rabiscados, nervosos. Rostos escuros, olhos
melancólicos e duros, pequenas legendas igualmente maltraçadas e elípticas. E o
texto do Júlio: "Tenho um lado mais forte que me segura. Gostaria de poder
satisfazer certas necessidades primitivas, mas se o fizer me comprometeria e
vocês sabem que existe uma graduação raciona l .Tudo aqui é muito sério, feito
no silêncio com técnica fechada. No primeiro dia me pareceu coisa de animais.
Depois pensei bem, pensei muito, e achei que tava certo. Somos animais mas nos
tratam com carinho. Há . muito carinho aqui. E amor também. Trabalho na
rouparia. Recebo visita semana sim, semana não. Eu sou um cara muito calmo.
Tudo que eu faço, é na calma. Já me disseram que sou do tipo
contemplativo", diz o protagonista, num de seus momentos mansos.
Pelo
conjunto da obra publicada pelo Júlio até agora, já se pode ir percebendo que
se trata de um sujeito de alta valia. Em nossa terra tão afeita aos modos
realistas de fazer literatura e arte (e modos tantas vezes banais), um ousado
como ele cria o desconforto imprescindível para renovar o ar da sala. Um ousado
de qualidade, que talvez a gente só re-conheça daqui a muito tempo. Mas quem está
certo é o Júlio: não importa muito, para o verdadeiro artista, que nós outros
demoremos a compreender, a ouvir sua voz. (E fica urna dúvida: o fato do Júlio
ser nascido e criado em Pelotas terá algo á ver com seu surrealismo? Aquele
ambiente povoado de pesadelos e sonhos, de arquitetura sofisticada e parado no
tempo, poderá ter sido matriz de sua radicalidade artística, similar à
radicalidade de outro grande artista pelotense contemporâneo chamado Vitor
Ramil, que não por acaso também bebe das águas surrealistas?)